quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A palavra é escolha de morte-vida


Ele voltou. - ainda que em pesadelos de olhos abertos - Virou-se para a cama em que ela dormia encolhida após as horas de agonia a que tivera sido exposta. As lágrimas nos cantos dos olhos ainda umidificavam o rosto pálido com olheiras profundas e doridas de se ver. Um suspiro agoniado a percorria como se aquela dor da alma efluísse. Um aroma misto, incenso aromático lembrando a infância longe dos grandes centros urbanos. Um ser completamente exposto, frágil e melancólico. Criatura-rítmica, sonoras eram até suas agonias interiores. Geme o espírito na amargura, saturado pela sombria falta de compreensão e descaso.
Aquela que, até um tempo atrás, servia a seu homem tal como a andorinha em cada viração. A água quente que deslizava por suas peles no banho, as malícias das mãos em seus corpos, os perfumes florais impregnados nas roupas, o cheiro do suor na camisa de trabalho a qual ela apertava junto ao rosto quando ele estava longe, atitude que lhe causava riso e um pouco de ódio, pois se apegar demais nos tempos atuais é um descuido que, irremediavelmente, leva à frustração. Sua visão confundia-se pelos cantos do quarto após o ato nefasto. Comoveu-se tão profundamente que os soluços provocavam dores em seus ossos e braços estranhamente franzinos. Miúdas estampas nas cortinas pareciam florzinhas que sorriam ao respirar o frescor da manhã e se deleitavam sob os raios do sol tão mornos.
A vida não tinha sido fácil para ela, pequena criança, seus olhos perdiam-se nas imensidões imaginando viagens, rostos de familiares, invenções e mimos pueris. Aquele olhar ainda puro, sempre translúcido, sempre sereno, um olhar pleno que se enxergava por dentro. A casa afastada do centro era um local vazio. Acostumara-se a conviver com a solidão e, desde cedo, todas as moléstias de outrem tentavam corromper a alegria de viver daquele sustinho em forma de gente.
Sua aparência foi esvaindo, seus olhos minados eram poças de águas, tão lindos, sedutores mistérios habitavam aqueles. Na idade adulta, tinha o rosto iluminado como a primeira poeira estelar que se desprende de um cometa e fagulha na atmosfera terrestre. Anos em que a esperança era a sua amiga e parceira, seu ânimo-alma. 
Lembrava-se daquele homem enquanto os gemidos do desprezo atravessavam a sua alma. Ele, um amante terno e compadecido, cheio de palavras doces e carinhos. - Mamãe sempre me disse que não confiasse na ternura excessiva, dela provém a raiva pelo ressentimento de não receber de volta o que se dá. - 
Naquele distrito afastado do centro somente a natureza era sua companheira. Dessa forma, envolvia-se nas histórias sobre as ninfas da floresta, os contos de mistérios e as algazarras das crianças pelo medo de fantasmas. Instintiva, media com o sentir as manifestações dos outros. Mediu tanto que ao se entregar em profundidade, latitudes e longitudes, esqueceu de se abastecer de si mesma e, ao mergulhar no mais profundo interior do ser de confiança, julgava, encontrou o charco onde sua vicissitude afundou. Naquela noite foi humilhada e estuprada pelo homem dos sonhos juvenis. Os maus-tratos piores não eram os físicos, a maior de todas as detrações seria o entendimento de que ela consentiu e se deixou definhar. Desta maneira, tornou-se vulnerável ao inimigo e manifestador de todas as assombrações que tinha medo na infância. O diabo? Não, o descaso com o seu próprio eu.
Ele voltou, naquela noite voltou. Ela fingia dormir, quieta como o pardal durante a tempestade. Ele a olhou por alguns instantes. Na mente perturbada e odiosa, vinham os flashes do que havia feito à mulher que um dia chamara de - grande amor -. Angustiou-se ao olhar aquela que lhe dedicara a vida, encaracolada feito uma criança que apanhou de cinto e chora na cama para aliviar a dor da alma. Voltou os olhos para ela, olhou para si no espelho. O rosto arranhado era a sua paga, a sua sina, a confirmação de que era um desprezível, tão estúpido, canalha. Recolheu as roupas no armário antes que ela acordasse e desse queixa na Delegacia da Mulher. Saiu de mansinho, trancou a porta e jogou a chave por baixo. Suspirou: - Estou perdido! Caminhou alguns passos na rua, apanhou o ônibus para um lugar que não conhecia. Imaginou a cidadezinha mais distante que encontrasse, onde a sua consciência não o perseguisse, onde a morte viesse aos poucos e certeira. Talvez pudesse recomeçar, talvez tirasse a própria vida. Descendo na rodoviária da - puta que o pariu - sentou no meio-fio,  pegou o chapéu de malandro, colocou na cabeça aquela obtusa proteção e se fechou. Virou mendigo! Vive pelas ruas e, em momentos de total insanidade ou plena maluquice, diz-se profeta.

*

A palavra escrita-falada é a libertação. Comida e curativo para as dores recolhidas. Alimento meu interior com a palavra, ela abastece meus sonhares, torna-me mais do que posso imaginar, leva-me aos altos lugares e não se intimida com as baixezas, supera-as. A palavra é vida quando tudo que você tem é ela.

*

A alma é ânimo logos orientador
sentido dístico remando sempre

um barco só

esse claro-escuro
respira o mundo
aspiro-me e vejo
o interior
[com outros olhos

eu-defeito, um nada
ainda que -  um - algo é
sustenho
as relíquias interiores

corroboro
com meus firmes arroubos
mantenho a marcha
sonhos não devem morrer

Joice Furtado - 15/08/2012

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